MEMÓRIAS DE INFÂNCIA

| 2 de jun. de 2009
na década de cinquenta, quando minha avó ainda era uma menina de dezessete anos e descia as ladeiras da cidade de são francisco do sul com seu vestido de renda, conheceu um menino pobre, magro, com as pernas meio tortas, e por esse menino se apaixonou. a mãe de minha avó era uma senhora esquálida, que parecia uma bruxa saída de um conto de hans christian anderson, e proibiu aquele namorico de sua filha com o herdeiro de um pescador. imagino que minha avó tenha chorado algumas lágrimas bem salgadas quando descobriu estar grávida do meu pai. sua mãe lhe fazia lobby para um rapaz de família tradicional da cidade, e assim que descobriu a gravidez indesejada de sua filha, amaldiçoou os frutos daquela relação até a terceira geração.
muito tempo depois disso, eu sei que o meu pai lamenta profundamente o fato de ter engravidado minha mãe quando ainda era um estudante de direito na universidade federal de santa catarina. esse foi um fator determinante para que ele largasse os estudos, se mudasse pro interior do estado com uma menina grávida do lado e iniciasse um trabalho de contínuo em uma fábrica de fundição. o meu pai jamais se tornaria um juíz de direito, e talvez esse tenha sido o motivo pelo qual meu irmão mais velho não tenha chorado na hora do parto.
ainda criança, peguei o meu pai na cama com uma vizinha loira, casada com um de seus melhores amigos. certamente foi uma das cenas mais chocantes da minha vida - ver aquela mulher pulando o muro que dividia as nossas casas, de baby doll, fugindo da chegada de minha mãe e pedindo pra eu não contar nada pra ninguém. depois disso, e durante muito tempo, o nome dela era impronunciável em nossa casa. mesmo quando, por acaso, era citado em alguma reportagem na televisão ou em algum filme ou algo do tipo, a gente ficava vermelho de vergonha. quando o meu pai me batia, eu sempre imaginava ele transando com aquela mulher estranha e beijando aquela boca, na mesma cama em que dormia com a minha mãe.
meu pai costumava caminhar ao meu lado a caminho do bar mais próximo de casa. quando chegava, comprimentava o dono do bar - um senhor gordo, que usava uma camisa regata com um pano de chão por cima de um dos ombros -, tomava um aperitivo, pedia cinco, seis cervejas, e voltava pra casa. naquele tempo ele me chamava de 'peteleco' e acreditava que, de alguma maneira, aquilo fosse nos aproximar.

1 comentários:

Thiago e Nayra, Nayra e Thiago disse...

Maravilhoso texto. Você está cada vez melhor. Acho que tá achando qual é o meio que você mais se encaixa na literatura. Com certeza são contos!


Nayra

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