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estranho mundo - parte quatro

| 28 de set. de 2009
perdeu alguma coisa? parte um - parte dois - parte três

"come mothers and fathers/ throughout the land/ and don't criticize/ what you can't understand/ your sons and your daughters are beyond your command/ your old road is/ rapidly agin'/ please get out of the new one/ if you can't lend your hand/ for the times they are a-changin'." (bob dylan, the times they are a-changin')


chamava-se oswald. e era o bandido mais procurado do país.
quando nasceu, no verão de mil novecentos e sessenta e três, os beatles haviam alcançado o topo das paradas britânicas pela primeira vez com o single please please me, e joão goulart assumia a presidência do governo brasileiro - cargo que perderia um ano depois por um golpe militar. foi também naquele ano que o presidente norte americano john f. kennedy havia sido assassinado à queima roupa por lee harvey oswald, enquanto circulava em seu automóvel ao lado do governador do texas, em frente à praça dealey, na cidade de dallas. embora não aja antecedentes que confirmem o fato, especula-se que a mãe do bandido mais procurado do país, uma professora particular de matemática, havia achado o assassino do presidente norte americano muito parecido com seu tio mais velho, morto por afogamento dois anos antes, e resolvera homenagea-lo colocando o seu nome no filho que estava para nascer.
o pai de oswald era um marinheiro português que havia atravessado o mundo deixando uma mulher grávida em cada porto que passava. embora estivesse completamente ausente da sua criação, o menino levava aonde quer que fosse uma carta enviada por ele, sua única referência documentada, que narrava suas aventuras de marujo em algumas ilhas perdidas do continente africano.
oswald passara uma infância solitária na companhia de histórias em quadrinhos e livros sobre a evolução das espécies. era um aluno exemplar e normalmente impressionava as outras pessoas com sua capacidade de memorização. aos dezesseis anos conhecera kurt wagner, o personagem noturno da série x-men, e começou a colecionar cada exemplar lançado pela marvel comics no brasil. não tinha amigos e a relação com sua mãe havia estremecido desde que ela inventara de casar com o dono de uma oficina mecânica. as outras pessoas evitavam o contato com oswald. havia alguma coisa de errada com o timbre da sua voz, na sua maneira de se vestir e na postura em que permanecia sentado na sala de aula. um dia, a caminho de casa, recebeu uma surra de um grupo de pessoas que o consideravam estranho demais para um convívio pacífico. a partir daquele momento desistiu da humanidade, e resolveu abandonar os super heróis das histórias em quadrinhos para se transformar num vilão.
no dia em que oswald saiu de casa para morar num quarto de pensão no centro da cidade, um outro atentado contra uma importante figura de estado havia acontecido. dessa vez um terrorista turco chamado mehmet ali agca - membro da frente popular para a liberação da palestina - quase matou o santo papa. oswald, a criança com um futuro promissor que anos antes havia vencido as olimpíadas estaduais de matemática e que tinha adquirido uma anti socialização graças a uma infância triste e solitária, passou o inverno de mil novecentos e oitenta e um arquitetando um plano maquiavélico para excluir todas as crianças da face da terra. com um sobretudo marrom, desses usados pelos grandes detetives e pelos jornalistas americanos da década de cinquenta, um chapéu na cabeça, uma máscara e uma pistola na mão, oswald invadia as principais escolas do país, sequestrava os estudantes e matava friamente um por um, até sumir misteriosamente como se tivesse adquirido os poderes que o seu personagem favorito das histórias em quadrinhos possuía.
e assim passaram-se os anos e oswald percorreu cada grande cidade brasileira aniquilando milhares de crianças, sem que o serviço de inteligência, a polícia ou o exército pudessem fazer alguma coisa. não havia rastros. não havia imagens da verdadeira identidade do assassino, que era chamado pela imprensa como junior, em referência ao personagem da música bad boy, composta pelo americano larry williams, e gravada pelos beatles no sexto álbum da banda. oswald demorava os exatos dois minutos e dezenove segundos que duram a música na gravação dos rapazes de liverpool para assassinar todas as suas vítimas, colocadas normalmente uma em frente a outra nos ginásios das escolas. e enquanto aniquilava aqueles estudantes, programava para que bad boy tocasse bem alto no sistema de som.
naquela manhã do dia dez de abril não havia nada que pudesse dar errado. iria invadir o portão da escola sem que percebessem e sequestraria um ou dois alunos, exigindo para que os demais se enfileiracem no ginásio. e então avistou aqueles dois repugnantes adolescentes jogados um sobre o outro no pátio do colégio e caminhou lentamente na direção deles, formando uma nuvem negra sobre os seus corpos. o terror estava pra começar.
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estranho mundo - parte três

| 21 de set. de 2009
perdeu alguma coisa? parte um - parte dois
ele disse olá. patrick olhou pra aquela menina parada em cima dele e a primeira palavra que disse foi olá, ajeitando os óculos. naquele momento ele não se importaria se estivesse com todos os ossos do corpo quebrados. e era bem possível que estivesse. aquela menina poderia permanecer cantando assim durante horas no seu ouvido que patrick não iria reclamar. estava acostumado com a voz taquara rachada de sua mãe, e com aquelas perguntas todas que os professores faziam e ele não sabia responder, que o som que vinha de dentro daquela menina parecia sair de uma caixinha de música. patrick tinha acabado de ser atropelado por uma bicicleta e rogava pela alma de leonardo da vinci pela invenção daquele engenhoso veículo, que parecia ter sido feito única e exclusivamente para uni-lo àquela menina.
patrick fechou os olhos e com um sorriso no rosto começou a lembrar de todas as coisas boas que já haviam acontecido em sua vida, e não se lembrava de um momento tão prazeroso como aquele. lembrou de como gostava de espremer bolinhas de plástico e de ficar pulando com os pés descalços sobre a grama do parque da cidade. e de como era bom tomar banho de chuva em dias de verão e daquela sensação de ser abraçado por todo mundo quando fez um gol pelo time da escola pela primeira vez, após ser escalado por engano depois que o professor de educação física lhe confundiu com um outro rapaz. mas nada se comparava ao fato de estar grudado àquela menina, sentindo o suor escorrer pelo corpo de alguém que havia pedalado quatro quilômetros só pra poder esbarrar com ele.
quando patrick abriu os olhos tentando absorver o prazer daquele momento com todos os sentidos que haviam em seu frágil corpo, pode perceber que a menina havia parado de cantar. e foi nesse instante, que deve ter durado uns três ou quatro segundos até que ele se desse conta de que deveria falar alguma coisa, que o menino disse olá, ajeitando os óculos. eleanor não respondeu. ficou parada observando patrick tentando decifrá-lo como um enigma. talvez ele não passasse de um adolescente tentando perder a virgindade com a primeira mulher que esbarrasse de bicicleta com ele. ou talvez aquele menino fosse um presente de aniversário dado pelo destino, que há tanto tempo havia virado as costas para ela. e assim os dois permaneceram em silêncio, até que a sirene da escola explodisse avisando que a primeira aula do dia estava pra começar.
- eu me chamo eleanor. igual a eleanor rigby dos beatles, só que sem o rigby!
por um instante passou pela cabeça de patrick a possibilidade de sair correndo em direção a qualquer lugar. sentia o seu corpo tremendo diante daquela menina, como se ele tivesse quebrado os ossos da costela. mas não havia dor. estava apreensivo; nervoso. sentia uma necessidade absurda de falar alguma coisa, mas tinha medo que aquela menina pensasse que ele não passava de um completo idiota. queria uma dessas frases que impressionam. queria causar uma boa impressão. mas tinha vergonha de garotas.
- o meu nome é patrick.
foi a única coisa que conseguiu sair. aquela frase idiota. o meu nome é patrick! qualquer criança boboca de quatro anos conseguiria falar aquilo. e além disso o seu rosto estava vermelho, como se todo o sangue do corpo tivesse se movido para a cabeça. chegou a ficar com medo de que aquela queda tivesse lhe causado alguma espécie de traumatismo craniano ou qualquer coisa do tipo.
foi quando a menina disse com uma doçura na voz que muito provavelmente eternizaria aquele momento por noites de sono mal dormidas - eu sempre sonhei em conhecer algum garoto que se chamasse patrick - e sorriu. patrick poderia jurar que conseguia ouvir all you need is love tocando como se a música estivesse saindo de dentro da menina. e então, interrompendo aquele momento de ternura, uma nuvem negra pairou sobre o corpo daqueles dois jovens estudantes jogados um sobre o outro no pátio de um colégio da américa latina. patrick estava com medo.
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estranho mundo - parte dois

| 9 de ago. de 2009
perdeu alguma coisa? parte um
no exato instante em que o barulho do despertador acordava patrick para aquele que seria o dia mais importante de sua vida, há algumas quadras daquele lugar uma garota chamada eleanor, que dormia sobre uma escrivaninha amparada sobre as páginas de 'admirável mundo novo', recebia as lambidas de ringo, um gato da raça chartreux, anunciando que um novo dia estava a caminho. eleanor era uma menina franzina, com o cabelo na altura dos ombros e um olhar perdido e solitário. ao acordar com aquela sensação gelada lambendo o seu queixo, pode ainda contar alguns segundos antes que seu rádio relógio explodisse ecoando 'good morning, good morning', dos beatles, pelo quarto inteiro.
eleanor é uma menina solitária. dessas que andam sozinhas pelas ruas abraçadas a livros escritos por gente que já morreu há muito tempo. seus pais são separados e ela é criada pela avó. não tem amigos. conversa pouco. às vezes passa dias inteiros sem trocar uma palavra com ninguém. ringo é seu único companheiro, um gato discreto com um sorriso encantador. eleanor o havia encontrado tempos atrás em frente a uma loja de discos no centro da cidade. ringo parecia esperar por ela. a menina saiu da loja agarrada a 'yellow submarine' em uma das mãos e o gato a seguiu até o caminho de casa.
a noite anterior havia sido preenchida pela leitura daquele livro que falava de um mundo novo, que já não era tão novo assim. aldous huxley era uma das figuras que estampavam a capa de 'sgt. pepper's lonely hearts club band', e só esse feito já seria necessário para que eleanor se interessasse por toda sua obra. ao acordar naquela manhã, ainda contando os segundos para mais uma explosão de seu despertador, eleanor pode perceber que o gato lhe chamava a atenção para um calendário a poucos centímetros do seu nariz. aquele era dia dez de abril. fatídico dia que os quatro rapazes de liverpool decidiram ir cada um pro seu canto, há alguns anos atrás. e dia do seu aniversário.
eleanor fechou os olhos por alguns instantes tentando absorver aquela informação. estava completando dezessete anos de idade. nos últimos anos, para comemorar sua avó fazia um bolo de cenoura e comprava uma coca cola dois litros. naquele dia, ninguém lhe telefonava. não havia 'parabéns pra você'. não havia presentes. sua avó sentava num canto da mesa, e enquanto mordia aquele bolo sem gosto de nada com sua dentadura, assistia a um desses programas do mundo das celebridades que passam na televisão. o aniversário acabava e a coca cola ainda estava pela metade.
o despertador tocou e eleanor saltou da cadeira com uma estranha sensação de que aquele dia seria diferente dos demais. se abraçou a ringo agradecendo a lembrança do aniversário, que tratou de ronronar fechando os olhos, e arrumou sua mochila a tempo de ir à escola. eleanor estava feliz. pedalava a todo vapor pelas ruas da cidade cantando 'here comes the sun', com aquele pressentimento confuso de alegria. era uma menina de dezessete anos. quase uma mulher. ainda tinha dentro de si uma vontade absurda de fazer um monte de coisa. e aquele seria o primeiro dia do resto da sua vida. enfim, o sol viria.
de repente, já no portão da escola, pedalando e cantando completamente desligada do mundo ao seu redor, eleanor não pode perceber a presença daquele menino estranho que caminhava em passos largos bem à frente de sua bicicleta. numa fração de segundos, num daqueles momentos mágicos que ficam guardados na memória da gente até o dia da nossa morte, eleanor havia atropelado patrick e aqueles dois sujeitos desconhecidos estavam jogados no chão um sobre o outro. a menina, ao sentir a presença de patrick grudado ao seu corpo, ainda teve forças pra cantar bem baixinho no seu ouvido:
- here comes the sun, and i say it's all right!
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estranho mundo - parte um

| 4 de ago. de 2009
acordou com aquela cara amassada de sono. o lençol agarrado a uma das pernas. o despertador gritando ao lado do ouvido. todo dia era a mesma coisa. patrick derrubava aquele relógio estúpido no chão e, ainda resmungando, aproveitava cada segundo de sono que lhe restasse até que sua mãe, uma luterana gorda de um metro e noventa, invadisse o seu quarto berrando para que ele se arrumasse a tempo de ir à escola. patrick estava cansado daquilo.
ainda assustado com a força daquela voz taquara rachada, que ecoaria pelo seu tímpano até o caminho do colégio, patrick se levanta esticando o braço na direção de um óculos fundo de garrafa que adormecia sobre a cômoda, e caminha em passos lentos rumo ao banheiro xingando mentalmente aquela velha parada em frente a porta de seu quarto, com todos os palavrões que conhecia e que eram proibidos de serem ditos dentro daquela casa.
patrick era um menino de dezesseis anos. magrelo. com algumas espinhas pela cara. as canelas finas. aparelho nos dentes. o cabelo ruivo despenteado. um óculos que lhe tomava metade do rosto. e um ar de fragilidade e insegurança. ainda não havia sequer beijado nenhuma garota, embora fosse secretamente apaixonado por umas três ou quatro - dentre essas uma vizinha loira, que patrick espiava trocar de roupa da janela de seu quarto, enquanto se masturbava cheirando uma de suas calcinhas, roubada de seu varal numa tarde de domingo. embora atraísse gente esquisita pro seu lado, patrick não tinha muitos amigos. passava a maior parte do tempo lendo história em quadrinhos e sonhando acordado.
dentro do ônibus ficava admirando as construções dos prédios, enquanto era levado à escola, onde poderia estudar matemática e um dia, quem sabe, construir prédios tão grandes e luxuosos quanto aqueles do centro da cidade. patrick não gostava muito de cálculos e passava boa parte daquela aula admirando as curvas assimétricas de sua professora. na verdade, ele não se interessava por quase nenhuma daquelas matérias. eram todas tão chatas e pareciam ter tão pouca utilidade em sua vida, que patrick comumente confundia os catetos com os quadrados de qualquer hipotenusa que lhe surgisse pela frente, não sabendo se isso lhe dizia respeito a matemática ou qualquer outra matéria.
senão bastasse aqueles hormônios todos circulando em rota de colisão pelo seu corpo. e as meninas que faziam de conta que ele nunca existiu, embora andassem rebolando a meio metro de seus olhos. senão bastasse sua mãe lhe encomodando desde logo cedo. e todas aquelas matérias insuportáveis ao qual era obrigado a ouvir na escola. patrick agora estava naquela época de decisão. o tempo corria e ele deveria optar pelo quê fazer com sua vida. ainda criança sonhava em ser um monte de coisa - bombeiro, cientista, piloto de avião, médico, inventor, apresentador de tv. e agora, com quase dezessete anos e um mundo inteiro pela frente, patrick estava sem grandes opções e enquanto pensava a respeito, tratava de descer no ponto de ônibus em frente a escola, ainda com aquela voz taquara rachada martelando bem baixinho o seu ouvido. caminhando com a mochila nas costas, cercado por pontos de interrogação por todos os lados, patrick mal poderia imaginar que aquele seria o dia mais importante de sua vida.
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a mulher mais feia da cidade

| 16 de jun. de 2009
raimunda é a mulher mais feia da cidade.
manca de uma das pernas, pesando cento e vinte quilos em um corpo deformado de um metro e cinquenta e oito, é quase cega do olho esquerdo, tem problemas intestinais e ainda não sabe o que é o amor. se não bastasse a desgraça de nascer feia e motivo de piada entre as crianças do bairro aonde mora, raimunda é a filha caçula de uma família pobre da periferia que, sem dinheiro para comprar roupas, lhe veste com alguns panos remendados usados por suas irmãs mais velhas. seu pai é um cobrador de ônibus que intercala o tempo de trabalho com algumas doses de vinho barato. sua mãe é zeladora em uma escola pública.
raimunda possui imensas papadas debaixo do braço que lhe impedem de raspar os pêlos de suas axilas. a tarde, caminhando de volta pra casa do curso de operadora de telemarketing que realiza numa escola profissionalizante, o suor lhe escorre pelo corpo, melando sua imensa barriga, e raimunda fede o cheiro de uma menina sem dinheiro para comprar cremes ou perfumes ou qualquer produto de beleza, que recheiam os catálogos de suas vizinhas vendedoras. ela já foi recusada em três entrevistas de emprego com a desculpa de que sua voz é inaudível, como quem tem um ovo preso à garganta.
ainda pequena, raimunda começou a desenvolver uma doença incurável em seu intestino, que lhe faz permanecer durante horas despejando toda podridão que possa existir dentro de um ser humano. durante esse tempo acostumou-se a levar um bloco de notas e uma caneta para o banheiro. e enquanto seu corpo tratava de jogar fora todas as impurezas que lhe habitavam, raimunda escrevia algumas poesias, e encontrava nelas uma forma de se comunicar com o mundo.
raimunda nunca foi moça de frequentar bibliotecas, nem conhece os grandes homens da literatura. escreve como quem descasca laranjas. sem medo de cometer equívocos de linguagem. sem medo de trocar acentos. de esquecer vírgulas. escreve aquilo que tem vontade de dizer. e de alguma maneira, a mulher mais feia da cidade, sentada em um vaso de privada, enquanto defeca a janta gordurosa preparada por sua mãe, escreve algumas coisas que valem a pena serem ditas, como quem colhe rosas em um chiqueiro.