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a parábola da parabólica

| 30 de set. de 2009
"cristo morreu cedo demais. se tivesse vivido até a minha época, ele teria repudiado a sua doutrina." (nietzsche)

são oito horas da noite. joão chega em casa cansado do trabalho. há três dias chove sem parar e seus pés estão ensopados. no ônibus a caminho de casa ouviu duas senhoras comentando de que esse seria o fim dos tempos. joão não acredita nessa coisa de fim dos tempos; e enquanto pensa a respeito disso, caminha na direção do sofá com suas meias enxarcadas. sua mulher reclama na cozinha de que seu filho mais novo havia recebido um bilhete de advertência na escola pela terceira vez no ano. joão trabalha como segurança de uma empresa de grande porte na zona industrial da cidade. passa doze horas por dia em pé, segurando uma arma na altura da cintura e convivendo com o tédio, as dores na altura do tornozelo e o silêncio das horas que não passam. em treze anos de profissão nunca precisou usar a arma, a não ser uma vez quando ameaçou um bêbado que tentava pular o muro que divide a empresa da rua de asfalto. a última coisa que joão quer na sua vida é apertar o gatilho ou ter que conviver com as reclamações de seu filho mais novo ao chegar em casa cansado do trabalho.
com os pés sobre um puff cor de abóbora que ganhou de sua mulher no aniversário de quarenta e três anos, joão aperta o controle remoto para dar início à transmissão do jornal nacional, naquela caixa preta de vinte e nove polegadas cravada na estante de sua sala, comprada em doze prestações em uma loja do centro da cidade. joão ainda era um menino quando ouviu no rádio o presidente do brasil dizer que se um fato não havia sido noticiado no jornal nacional era porque ele não havia acontecido. e desde então, religiosamente, as suas atenções estão voltadas para a televisão naquele mesmo horário - para ouvir as notícias que a maior rede de televisão de seu país tinha preparado pra ele.
- boa noite - diz o apresentador do jornal que invade as telas de sessenta por cento de todos os televisores ligados no brasil naquele horário - o juíz gláucio de araújo da nona vara criminal de são paulo abriu ação criminal contra o fundador da igreja universal do reino de deus, edir macedo, e mais nove pessoas ligadas a ele por lavagem de dinheiro e formação de quadrilha.
a câmera muda para sua mulher, também jornalista e companheira de bancada há mais de onze anos.
- segundo a denúncia da promotoria, edir macedo e os outros acusados desviaram dinheiro de doações de fiéis e se aproveitaram da isenção de impostos oferecidas à igrejas de qualquer culto, determinada pela constituição.
nesse momento quase todos os olhos e ouvidos do brasil estão voltados para a guerra midiática decretada pela quarta maior emissora do mundo à igreja neopentecostal que mais cresce na américa latina, e que controla a segunda grande emissora do país, sua maior concorrente - a rede record de televisão. a alta cúpula da igreja deveria estar naquele momento andando de um lado para o outro, em uma sala de reuniões aonde seria decidido qual seria o contra-ataque.
joão não acredita em deus desde que tinha dezessete anos, quando perdeu um irmão assassinado, mas sua mulher frequenta o templo da igreja universal do reino de deus construído há duas quadras de sua casa. há algum tempo boa parte de seu salário é direcionado para os sacos de recolhimento de ofertas nos cultos de domingo, e para o dízimo. joão lamenta profundamente aquelas horas de trabalho que não serviram para nada.
- se deus é o caminho, edir macedo é o pedágio.
e então ele muda de canal com aquela sensação de que se não bastasse o mundo inteiro ser enganado por aquela estórinha pra boi dormir contada na bíblia, o seu bolso pagava caro para sustentar aquelas mentiras todas. na rede record ele tem a triste sensação de que o dinheiro do suor de seu trabalho havia parado na conta bancária daquele apresentador, que sorria de terno e gravata tentando lhe vender uma pasta de dente vagabunda, usada por pessoas como ele que não tinham dinheiro para comprar pastas de dente indicadas pelos dentistas.

*postado originalmente na minha coluna de domingo (27/09) no blog bixo de se7e cabeças.
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estranho mundo - parte quatro

| 28 de set. de 2009
perdeu alguma coisa? parte um - parte dois - parte três

"come mothers and fathers/ throughout the land/ and don't criticize/ what you can't understand/ your sons and your daughters are beyond your command/ your old road is/ rapidly agin'/ please get out of the new one/ if you can't lend your hand/ for the times they are a-changin'." (bob dylan, the times they are a-changin')


chamava-se oswald. e era o bandido mais procurado do país.
quando nasceu, no verão de mil novecentos e sessenta e três, os beatles haviam alcançado o topo das paradas britânicas pela primeira vez com o single please please me, e joão goulart assumia a presidência do governo brasileiro - cargo que perderia um ano depois por um golpe militar. foi também naquele ano que o presidente norte americano john f. kennedy havia sido assassinado à queima roupa por lee harvey oswald, enquanto circulava em seu automóvel ao lado do governador do texas, em frente à praça dealey, na cidade de dallas. embora não aja antecedentes que confirmem o fato, especula-se que a mãe do bandido mais procurado do país, uma professora particular de matemática, havia achado o assassino do presidente norte americano muito parecido com seu tio mais velho, morto por afogamento dois anos antes, e resolvera homenagea-lo colocando o seu nome no filho que estava para nascer.
o pai de oswald era um marinheiro português que havia atravessado o mundo deixando uma mulher grávida em cada porto que passava. embora estivesse completamente ausente da sua criação, o menino levava aonde quer que fosse uma carta enviada por ele, sua única referência documentada, que narrava suas aventuras de marujo em algumas ilhas perdidas do continente africano.
oswald passara uma infância solitária na companhia de histórias em quadrinhos e livros sobre a evolução das espécies. era um aluno exemplar e normalmente impressionava as outras pessoas com sua capacidade de memorização. aos dezesseis anos conhecera kurt wagner, o personagem noturno da série x-men, e começou a colecionar cada exemplar lançado pela marvel comics no brasil. não tinha amigos e a relação com sua mãe havia estremecido desde que ela inventara de casar com o dono de uma oficina mecânica. as outras pessoas evitavam o contato com oswald. havia alguma coisa de errada com o timbre da sua voz, na sua maneira de se vestir e na postura em que permanecia sentado na sala de aula. um dia, a caminho de casa, recebeu uma surra de um grupo de pessoas que o consideravam estranho demais para um convívio pacífico. a partir daquele momento desistiu da humanidade, e resolveu abandonar os super heróis das histórias em quadrinhos para se transformar num vilão.
no dia em que oswald saiu de casa para morar num quarto de pensão no centro da cidade, um outro atentado contra uma importante figura de estado havia acontecido. dessa vez um terrorista turco chamado mehmet ali agca - membro da frente popular para a liberação da palestina - quase matou o santo papa. oswald, a criança com um futuro promissor que anos antes havia vencido as olimpíadas estaduais de matemática e que tinha adquirido uma anti socialização graças a uma infância triste e solitária, passou o inverno de mil novecentos e oitenta e um arquitetando um plano maquiavélico para excluir todas as crianças da face da terra. com um sobretudo marrom, desses usados pelos grandes detetives e pelos jornalistas americanos da década de cinquenta, um chapéu na cabeça, uma máscara e uma pistola na mão, oswald invadia as principais escolas do país, sequestrava os estudantes e matava friamente um por um, até sumir misteriosamente como se tivesse adquirido os poderes que o seu personagem favorito das histórias em quadrinhos possuía.
e assim passaram-se os anos e oswald percorreu cada grande cidade brasileira aniquilando milhares de crianças, sem que o serviço de inteligência, a polícia ou o exército pudessem fazer alguma coisa. não havia rastros. não havia imagens da verdadeira identidade do assassino, que era chamado pela imprensa como junior, em referência ao personagem da música bad boy, composta pelo americano larry williams, e gravada pelos beatles no sexto álbum da banda. oswald demorava os exatos dois minutos e dezenove segundos que duram a música na gravação dos rapazes de liverpool para assassinar todas as suas vítimas, colocadas normalmente uma em frente a outra nos ginásios das escolas. e enquanto aniquilava aqueles estudantes, programava para que bad boy tocasse bem alto no sistema de som.
naquela manhã do dia dez de abril não havia nada que pudesse dar errado. iria invadir o portão da escola sem que percebessem e sequestraria um ou dois alunos, exigindo para que os demais se enfileiracem no ginásio. e então avistou aqueles dois repugnantes adolescentes jogados um sobre o outro no pátio do colégio e caminhou lentamente na direção deles, formando uma nuvem negra sobre os seus corpos. o terror estava pra começar.
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Guts

| 24 de set. de 2009
Inspire.
Inspire o máximo de ar que conseguir. Essa estória deve durar aproximadamente o tempo que você consegue segurar sua respiração, e um pouco mais. Então escute o mais rápido que puder.
Um amigo meu aos 13 anos ouviu falar sobre “fio-terra”. Isso é quando alguém enfia um consolo na bunda. Estimule a próstata o suficiente, e os rumores dizem que você pode ter orgasmos explosivos sem usar as mãos. Nessa idade, esse amigo é um pequeno maníaco sexual. Ele está sempre buscando uma melhor forma de gozar. Ele sai para comprar uma cenoura e lubrificante. Para conduzir uma pesquisa particular. Ele então imagina como seria a cena no caixa do supermercado, a solitária cenoura e o lubrificante percorrendo pela esteira o caminho até o atendente no caixa. Todos os clientes esperando na fila, observando. Todos vendo a grande noite que ele preparou.
Então, esse amigo compra leite, ovos, açúcar e uma cenoura, todos os ingredientes para um bolo de cenoura. E vaselina.
Como se ele fosse para casa enfiar um bolo de cenoura no rabo.
Em casa, ele corta a ponta da cenoura com um alicate. Ele a lubrifica e desce seu traseiro por ela. Então, nada. Nenhum orgasmo. Nada acontece, exceto pela dor.
Então, esse garoto, a mãe dele grita dizendo que é a hora da janta. Ela diz para descer, naquele momento.
Ele remove a cenoura e coloca a coisa pegajosa e imunda no meio das roupas sujas debaixo da cama.
Depois do jantar, ele procura pela cenoura, e não está mais lá. Todas as suas roupas sujas, enquanto ele jantava, foram recolhidas por sua mãe para lavá-las. Não havia como ela não encontrar a cenoura, cuidadosamente esculpida com uma faca da cozinha, ainda lustrosa de lubrificante e fedorenta.
Esse amigo meu, ele espera por meses na surdina, esperando que seus pais o confrontem. E eles nunca fazem isso. Nunca. Mesmo agora que ele cresceu, aquela cenoura invisível aparece em toda ceia de Natal, em toda festa de aniversário. Em toda caça de ovos de páscoa com seus filhos, os netos de seus pais, aquela cenoura fantasma paira por sobre todos eles. Isso é algo vergonhoso demais para dar um nome.
As pessoas na França possuem uma expressão: “sagacidade de escadas.” Em francês: esprit de l’escalier. Representa aquele momento em que você encontra a resposta, mas é tarde demais. Digamos que você está numa festa e alguém o insulta. Você precisa dizer algo. Então sob pressão, com todos olhando, você diz algo estúpido. Mas no momento em que sai da festa….
Enquanto você desce as escadas, então - mágica. Você pensa na coisa mais perfeita que poderia ter dito. A réplica mais avassaladora.
Esse é o espírito da escada.
O problema é que até mesmo os franceses não possuem uma expressão para as coisas estúpidas que você diz sob pressão. Essas coisas estúpidas e desesperadas que você pensa ou faz.
Alguns atos são baixos demais para receberem um nome. Baixos demais para serem discutidos.
Agora que me recordo, os especialistas em psicologia dos jovens, os conselheiros escolares, dizem que a maioria dos casos de suicídio adolescente eram garotos se estrangulando enquanto se masturbavam. Seus pais o encontravam, uma toalha enrolada em volta do pescoço, a toalha amarrada no suporte de cabides do armário, o garoto morto. Esperma por toda a parte. É claro que os pais limpavam tudo. Colocavam calças no garoto. Faziam parecer… melhor. Ao menos, intencional. Um caso comum de triste suicídio adolescente.
Outro amigo meu, um garoto da escola, seu irmão mais velho na Marinha dizia como os caras do Oriente Médio se masturbavam de forma diferente do que fazemos por aqui. Esse irmão tinha desembarcado num desses países cheios de camelos, na qual o mercado público vendia o que pareciam abridores de carta chiques. Cada uma dessas coisas é apenas um fino cabo de latão ou prata polida, do comprimento aproximado de sua mão, com uma grande ponta numa das extremidades, ou uma esfera de metal ou uma dessas empunhaduras como as de espadas. Esse irmão da Marinha dizia que os árabes ficavam de pau duro e inseriam esse cabo de metal dentro e por toda a extremidade de seus paus. Eles então batiam punheta com o cabo dentro, e isso os faziam gozar melhor. De forma mais intensa.
Esse irmão mais velho viajava pelo mundo, mandando frases em francês. Frases em russo. Dicas de punhetagem.
Depois disso, o irmão mais novo, um dia ele não aparece na escola. Naquela noite, ele liga pedindo para eu pegar seus deveres de casa pelas próximas semanas. Porque ele está no hospital.
Ele tem que compartilhar um quarto com velhos que estiveram operando as entranhas. Ele diz que todos compartilham a mesma televisão. Que a única coisa para dar privacidade é uma cortina. Seus pais não o vem visitar. No telefone, ele diz como os pais dele queriam matar o irmão mais velho da Marinha.
Pelo telefone, o garoto diz que, no dia anterior, ele estava meio chapado. Em casa, no seu quarto, ele deitou-se na cama. Ele estava acendendo uma vela e folheando algumas revistas pornográficas antigas, preparando-se para bater uma. Isso foi depois que ele recebeu as notícias de seu irmão marinheiro. Aquela dica de como os árabes se masturbam. O garoto olha ao redor procurando por algo que possa servir. Uma caneta é grande demais. Um lápis, grande demais e áspero. Mas escorrendo pelo canto da vela havia um fino filete de vela derretida que poderia servir. Com as pontas dos dedos, o garoto descola o filete da vela. Ele o enrola na palma de suas mãos. Longo, e liso, e fino.
Chapado e com tesão, ele enfia lá dentro, mais e mais fundo por dentro do canal urinário de seu pau. Com uma boa parte da cera ainda para fora, ele começa o trabalho.
Até mesmo nesse momento ele reconhece que esses árabes eram caras muito espertos. Eles reinventaram totalmente a punheta. Deitado totalmente na cama, as coisas estão ficando tão boas que o garoto nem observa a filete de cera. Ele está quase gozando quando percebe que a cera não está mais lá.
O fino filete de cera entrou. Bem lá no fundo. Tão fundo que ele nem consegue sentir a cera dentro de seu pau.
Das escadas, sua mãe grita dizendo que é a hora da janta. Ela diz para ele descer naquele momento. O garoto da cenoura e o garoto da cera eram pessoas diferentes, mas viviam basicamente a mesma vida.
Depois do jantar, as entranhas do garoto começam a doer. É cera, então ele imagina que ela vá derreter dentro dele e ele poderá mijar para fora. Agora suas costas doem. Seus rins. Ele não consegue ficar ereto corretamente.
O garoto falando pelo telefone do seu quarto de hospital, no fundo pode-se ouvir campainhas, pessoas gritando. Game shows.
Os raios-X mostram a verdade, algo longo e fino, dobrado dentro de sua bexiga. Esse longo e fino V dentro dele está coletando todos os minerais no seu mijo. Está ficando maior e mais expesso, coletando cristais de cálcio, está batendo lá dentro, rasgando a frágil parede interna de sua bexiga, bloqueando a urina. Seus rins estão cheios. O pouco que sai de seu pau é vermelho de sangue.
O garoto e seus pais, a família inteira, olhando aquela chapa de raio-X com o médico e as enfermeiras ali, um grande V de cera brilhando na chapa para todos verem, ele deve falar a verdade. Sobre o jeito que os árabes se masturbam. Sobre o que o seu irmãos mais velho da Marinha escreveu.
No telefone, nesse momento, ele começa a chorar.
Eles pagam pela operação na bexiga com o dinheiro da poupança para sua faculdade. Um erro estúpido, e agora ele nunca mais será um advogado.
Enfiando coisas dentro de você. Enfiando-se dentro de coisas. Uma vela no seu pau ou seu pescoço num nó, sabíamos que não poderia acabar em problemas.
O que me fez ter problemas, eu chamava de Pesca Submarina. Isso era bater punheta embaixo d’água, sentando no fundo da piscina dos meus pais. Pegando fôlego, eu afundava até o fundo da piscina e tirava meu calção. Eu sentava no fundo por dois, três, quatro minutos.
Só de bater punheta eu tinha conseguido uma enorme capacidade pulmonar. Se eu tivesse a casa só para mim, eu faria isso a tarde toda. Depois que eu gozava, meu esperma ficava boiando em grandes e gordas gotas.
Depois disso eram mais alguns mergulhos, para apanhar todas. Para pegar todas e colocá-las em uma toalha. Por isso chamava de Pesca Submarina. Mesmo com o cloro, havia a minha irmã para se preocupar. Ou, Cristo, minha mãe.
Esse era meu maior medo: minha irmã adolescente e virgem, pensando que estava ficando gorda e dando a luz a um bebê retardado de duas cabeças. As duas parecendo-se comigo. Eu, o pai e o tio. No fim, são as coisas nais quais você não se preocupa que te pegam.
A melhor parte da Pesca Submarina era o duto da bomba do filtro. A melhor parte era ficar pelado e sentar nela.
Como os franceses dizem, Quem não gosta de ter seu cú chupado? Mesmo assim, num minuto você é só um garoto batendo uma, e no outro nunca mais será um advogado.
Num minuto eu estou no fundo da piscina e o céu é um azul claro e ondulado, aparecendo através de dois metros e meio de água sobre minha cabeça. Silêncio total exceto pelas batidas do coração que escuto em meu ouvido. Meu calção amarelo-listrado preso em volta do meu pescoço por segurança, só em caso de algum amigo, um vizinho, alguém que apareça e pergunte porque faltei aos treinos de futebol. O constante chupar da saída de água me envolve enquanto delicio minha bunda magra e branquela naquela sensação.
Num momento eu tenho ar o suficiente e meu pau está na minha mão. Meus pais estão no trabalho e minha irmão no balé. Ninguém estará em casa por horas.
Minhas mãos começam a punhetar, e eu paro. Eu subo para pegar mais ar. Afundo e sento no fundo.
Faço isso de novo, e de novo.
Deve ser por isso que garotas querem sentar na sua cara. A sucção é como dar uma cagada que nunca acaba. Meu pau duro e meu cú sendo chupado, eu não preciso de mais ar. O bater do meu coração nos ouvidos, eu fico no fundo até as brilhantes estrelas de luz começarem a surgir nos meus olhos. Minhas pernas esticadas, a batata das pernas esfregando-se contra o fundo. Meus dedos do pé ficando azul, meus dedos ficando enrugados por estar tanto tempo na água.
E então acontece. As gotas gordas de gozo aparecem. É nesse momento que preciso de mais ar. Mas quando tento sair do fundo, não consigo. Não consigo colocar meus pés abaixo de mim. Minha bunda está presa.
Médicos de plantão de emergência podem confirmar que todo ano cerca de 150 pessoas ficam presas dessa forma, sugadas pelo duto do filtro de piscina. Fique com o cabelo preso, ou o traseiro, e você vai se afogar. Todo o ano, muita gente fica. A maioria na Flórida.
As pessoas simplesmente não falam sobre isso. Nem mesmo os franceses falam sobre tudo. Colocando um joelho no fundo, colocando um pé abaixo de mim, eu empurro contra o fundo. Estou saindo, não mais sentado no fundo da piscina, mas não estou chegando para fora da água também.
Ainda nadando, mexendo meus dois braços, eu devo estar na metade do caminho para a superfície mas não estou indo mais longe que isso. O bater do meu coração no meu ouvido fica mais alto e mais forte.
As brilhantes fagulhas de luz passam pelos meus olhos, e eu olho para trás… mas não faz sentido. Uma corda espessa, algum tipo de cobra, branco-azulada e cheia de veias, saiu do duto da piscina e está segurando minha bunda. Algumas das veias estão sangrando, sangue vermelho que aparenta ser preto debaixo da água, que sai por pequenos cortes na pálida pele da cobra. O sangue começa a sumir na água, e dentro da pele fina e branco-azulada da cobra é possível ver pedaços de alguma refeição semi-digerida.
Só há uma explicação. Algum horrível monstro marinho, uma serpente do mar, algo que nunca viu a luz do dia, estava se escondendo no fundo escuro do duto da piscina, só esperando para me comer.
Então… eu chuto a coisa, chuto a pele enrugada e escorregadia cheia de veias, e parece que mais está saindo do duto. Deve ser do tamanho da minha perna nesse momento, mas ainda segurando firme no meu cú. Com outro chute, estou a centímetros de conseguir respirar. Ainda sentido a cobra presa no meu traseiro, estou bem próximo de escapar.
Dentro da cobra, é possível ver milho e amendoins. E dá pra ver uma brilhante esfera laranja. É um daqueles tipos de vitamina que meu pai me força a tomar, para poder ganhar massa. Para conseguir a bolsa como jogador de futebol. Com ferro e ácidos graxos Ômega 3.
Ver essa pílula foi o que me salvou a vida.
Não é uma cobra. É meu intestino grosso e meu cólon sendo puxados para fora de mim. O que os médicos chamam de prolapso de reto. São minhas entranhas sendo sugadas pelo duto.
Os médicos de plantão de emergência podem confirmar que uma bomba de piscina pode puxar 300 litros de água por minuto. Isso corresponde a 180 quilos de pressão. O grande problema é que somos todos interconectados por dentro. Seu traseiro é apenas o término da sua boca. Se eu deixasse, a bomba continuaria a puxar minhas entranhas até que chegasse na minha língua. Imagine dar uma cagada de 180 quilos e você vai perceber como isso pode acontecer.
O que eu posso dizer é que suas entranhas não sentem tanta dor. Não da forma que sua pele sente dor. As coisas que você digere, os médicos chamam de matéria fecal. No meio disso tudo está o suco gástrico, com pedaços de milho, amendoins e ervilhas.
Essa sopa de sangue, milho, merda, esperma e amendoim flutua ao meu redor. Mesmo com minhas entranhas saindo pelo meu traseiro, eu tentando segurar o que restou, mesmo assim, minha vontade é de colocar meu calção de alguma forma.
Deus proíba que meus pais vejam meu pau.
Com uma mão seguro a saída do meu rabo, com a outra mão puxo o calção amarelo-listrado do meu pescoço. Mesmo assim, é impossível puxar de volta.
Se você quer sentir como seria tocar seus intestinos, compre um camisinha feita com intestino de carneiro. Pegue uma e desenrole. Encha de manteiga de amendoim. Lubrifique e coloque debaixo d’água. Então tente rasgá-la. Tente partir em duas. É firme e ao mesmo tempo macia. É tão escorregadia que não dá para segurar.
Uma camisinha dessas é feita do bom e velho intestino.
Você então vê contra o que eu lutava.
Se eu largo, sai tudo.
Se eu nado para a superfície, sai tudo.
Se eu não nadar, me afogo.
É escolher entre morrer agora, e morrer em um minuto.
O que meus pais vão encontrar depois do trabalho é um feto grande e pelado, todo curvado. Mergulhado na árgua turva da piscina de casa. Preso ao fundo por uma larga corda de veias e entranhas retorcidas. O oposto do garoto que se estrangula enquanto bate uma. Esse é o bebê que trouxeram para casa do hospital há 13 anos. Esse é o garoto que esperavam conseguir uma bolsa de jogador de futebol e eventualmente um mestrado. Que cuidaria deles quando estivessem velhinhos. Seus sonhos e esperanças. Flutuando aqui, pelado e morto. Em volta dele, gotas gordas de esperma.
Ou isso, ou meus pais me encontrariam enrolado numa toalha encharcada de sangue, morto entre a piscina e o telefone da cozinha, os restos destroçados das minhas entranhas para fora do meu calção amarelo-listrado.
Algo sobre o qual nem os franceses falam.
Aquele irmão mais velho na Marinha, ele ensinou uma outra expressão bacana. Uma expressão russa. Do jeito que nós falamos “Preciso disso como preciso de um buraco na cabeça…,” os russos dizem, “Preciso disso como preciso de dentes no meu cú……
Mne eto nado kak zuby v zadnitse.
Essas histórias de como animais presos em armadilhas roem a própria perna fora, bem, qualquer coiote poderá te confirmar que algumas mordidas são melhores que morrer.
Droga… mesmo se você for russo, um dia vai querer esses dentes.
Senão, o que você pode fazer é se curvar todo. Você coloca um cotovelo por baixo do joelho e puxa essa perna para o seu rosto. Você morde e rói seu próprio cú. Se você ficar sem ar você consegue roer qualquer coisa para poder respirar de novo.
Não é algo que seja bom contar a uma garota no primeiro encontro. Não se você espera por um beijinho de despedida. Se eu contasse como é o gosto, vocês não comeriam mais frutos do mar.
É difícil dizer o que enojaria mais meus pais: como entrei nessa situação, ou como me salvei. Depois do hospital, minha mãe dizia, “Você não sabia o que estava fazendo, querido. Você estava em choque.” E ela teve que aprender a cozinhar ovos pochê.
Todas aquelas pessoas enojadas ou sentindo pena de mim….
Precisava disso como precisaria de dentes no cú.
Hoje em dia, as pessoas sempre me dizem que eu sou magrinho demais. As pessoas em jantares ficam quietas ou bravas quando não como o cozido que fizeram. Cozidos podem me matar. Presuntadas. Qualquer coisa que fique mais que algumas horas dentro de mim, sai ainda como comida. Feijões caseiros ou atum, eu levanto e encontro aquilo intacto na privada.
Depois que você passa por uma lavagem estomacal super-radical como essa, você não digere carne tão bem. A maioria das pessoas tem um metro e meio de intestino grosso. Eu tenho sorte de ainda ter meus quinze centímetros. Então nunca consegui minha bolsa de jogador de futebol. Nunca consegui meu mestrado. Meus dois amigos, o da cera e o da cenoura, eles cresceram, ficaram grandes, mas eu nunca pesei mais do que pesava aos 13 anos.
Outro problema foi que meus pais pagaram muita grana naquela piscina. No fim meu pai teve que falar para o cara da limpeza da piscina que era um cachorro. O cachorro da família caiu e se afogou. O corpo sugado pelo duto. Mesmo depois que o cara da limpeza abriu o filtro e removeu um tubo pegajoso, um pedaço molhado de intestino com uma grande vitamina laranja dentro, mesmo assim meu pai dizia, “Aquela porra daquele cachorro era maluco.”
Mesmo do meu quarto no segundo andar, podia ouvir meu pai falar, “Não dava para deixar aquele cachorro sozinho por um segundo….”
E então a menstruação da minha irmã atrasou.
Mesmo depois que trocaram a água da piscina, depois que vendemos a casa e mudamos para outro estado, depois do aborto da minha irmã, mesmo depois de tudo isso meus pais nunca mencionaram mais isso novamente.
Nunca.
Essa é a nossa cenoura invisível.
Você. Agora você pode respirar.
Eu ainda não.

- Chuck Palahniuk
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o fim é só o começo

| 23 de set. de 2009
"se o meu médico me dissesse que eu teria apenas seis minutos para viver, eu não ficaria remoendo. eu digitaria um pouco mais rápido." (isaac asimov)

eu estou cercado por todos os cantos. é o fim. não posso dar mais nenhum passo. mcluhan tinha razão.
tudo começou com um simples preenchimento de cadastro. eu me lembro que aquilo prometia não tomar muito do meu tempo. e então o orkut começou a querer saber sobre quem eu era, o que eu fazia, do que eu gostava, aonde eu morava e quem eram os meus amigos. o orkut me interrogava e a partir daquele momento eu estava me transformando num arquivo. num doc. num ponto-alguma-coisa. com o tempo o negócio foi só piorando e eu comecei a me envolver de uma maneira ainda mais perigosa.
comecei a contar pra todo mundo qualquer coisa que acontecesse na minha vida, ou qualquer coisa que passasse pela minha cabeça. o twitter seguia cada passo que eu dava. um simples vou ali e já volto era suficiente. e ele ainda fazia questão de me passar relatórios sobre tudo o que se passava na vida das outras pessoas. o twitter era exigente e mesmo que eu criasse uma complexa teoria a respeito do funcionamento das coisas, que poderia me render a publicação de um livro ou a conquista de um prêmio internacional, ele só me dava um espaçozinho de cento e quarenta caracteres para explicar tudo com detalhes. e nenhuma vírgula a mais.
o negócio estava indo de mal a pior. eu estava sendo dominado pelas agá-te-te-pês. depois de um tempo deixei de enviar cartas pelo correio, e comecei a perder horas do meu dia reenviando para todos os contatos da minha conta de email milhares de correntes virtuais, mensagens de fé e esperança, piadas, teorias da conspiração, e mais um monte de besteira. deixei de comprar jornais em bancas de revista pra dar uma chance aos portais virtuais, que me enfiavam goela abaixo um milhão de informações através de imagens, manchetes, links e textos curtos. abandonei as lojas de disco e as videolocadoras por downloads ilegais. e se num determinado momento de descuido colocasse pra tocar a pasta de música da minha irmã mais nova, o lastfm não pensava duas vezes antes de sair por aí falando que eu era o mais novo emo do pedaço. e ainda aparecia um monte de gente estranha querendo ser meu amigo e revelando suas compatibilidades, que não tinham nada a ver com o meu universo.
chegou um momento em que eu não podia tirar uma mísera foto sem que o flickr não soubesse. se fosse num aniversário de casamento de um parente qualquer e filmasse um desses momentos descontraídos, aonde as pessoas bebem, dançam e falam à vontade, aquilo logo ia parar nas mãos do youtube. se fosse no cinema com a minha namorada só pra trocar uns beijinhos, tomar guaraná e comer pipoca, numa dessas comédias românticas despretenciosas, era a vez do flixster me colocar na parede até que eu revelasse a minha opinião sobre o filme. não podia trocar uma palavrinha com os meus amigos sem que o msn não quisesse salvar a conversa. e se estivesse lendo um livro qualquer, ou abandonasse de forma imperdoável um clássico na página quarenta e quatro, não demorava muito tempo para que o skoob saísse por aí avisando todo mundo.
eu estava preso àquela bolha uniforme e globalizada. e ainda teria que aprender a conviver com o myspace, o facebook e o multiply, com a microsoft, a apple e o google. o mundo aos poucos estava sendo dominado por uma onda social high tech e o preço por aquilo haveria de ser a nossa total liberdade.

*postado originalmente na minha coluna de domingo (20/09) no blog bixo de se7e cabeças.
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estranho mundo - parte três

| 21 de set. de 2009
perdeu alguma coisa? parte um - parte dois
ele disse olá. patrick olhou pra aquela menina parada em cima dele e a primeira palavra que disse foi olá, ajeitando os óculos. naquele momento ele não se importaria se estivesse com todos os ossos do corpo quebrados. e era bem possível que estivesse. aquela menina poderia permanecer cantando assim durante horas no seu ouvido que patrick não iria reclamar. estava acostumado com a voz taquara rachada de sua mãe, e com aquelas perguntas todas que os professores faziam e ele não sabia responder, que o som que vinha de dentro daquela menina parecia sair de uma caixinha de música. patrick tinha acabado de ser atropelado por uma bicicleta e rogava pela alma de leonardo da vinci pela invenção daquele engenhoso veículo, que parecia ter sido feito única e exclusivamente para uni-lo àquela menina.
patrick fechou os olhos e com um sorriso no rosto começou a lembrar de todas as coisas boas que já haviam acontecido em sua vida, e não se lembrava de um momento tão prazeroso como aquele. lembrou de como gostava de espremer bolinhas de plástico e de ficar pulando com os pés descalços sobre a grama do parque da cidade. e de como era bom tomar banho de chuva em dias de verão e daquela sensação de ser abraçado por todo mundo quando fez um gol pelo time da escola pela primeira vez, após ser escalado por engano depois que o professor de educação física lhe confundiu com um outro rapaz. mas nada se comparava ao fato de estar grudado àquela menina, sentindo o suor escorrer pelo corpo de alguém que havia pedalado quatro quilômetros só pra poder esbarrar com ele.
quando patrick abriu os olhos tentando absorver o prazer daquele momento com todos os sentidos que haviam em seu frágil corpo, pode perceber que a menina havia parado de cantar. e foi nesse instante, que deve ter durado uns três ou quatro segundos até que ele se desse conta de que deveria falar alguma coisa, que o menino disse olá, ajeitando os óculos. eleanor não respondeu. ficou parada observando patrick tentando decifrá-lo como um enigma. talvez ele não passasse de um adolescente tentando perder a virgindade com a primeira mulher que esbarrasse de bicicleta com ele. ou talvez aquele menino fosse um presente de aniversário dado pelo destino, que há tanto tempo havia virado as costas para ela. e assim os dois permaneceram em silêncio, até que a sirene da escola explodisse avisando que a primeira aula do dia estava pra começar.
- eu me chamo eleanor. igual a eleanor rigby dos beatles, só que sem o rigby!
por um instante passou pela cabeça de patrick a possibilidade de sair correndo em direção a qualquer lugar. sentia o seu corpo tremendo diante daquela menina, como se ele tivesse quebrado os ossos da costela. mas não havia dor. estava apreensivo; nervoso. sentia uma necessidade absurda de falar alguma coisa, mas tinha medo que aquela menina pensasse que ele não passava de um completo idiota. queria uma dessas frases que impressionam. queria causar uma boa impressão. mas tinha vergonha de garotas.
- o meu nome é patrick.
foi a única coisa que conseguiu sair. aquela frase idiota. o meu nome é patrick! qualquer criança boboca de quatro anos conseguiria falar aquilo. e além disso o seu rosto estava vermelho, como se todo o sangue do corpo tivesse se movido para a cabeça. chegou a ficar com medo de que aquela queda tivesse lhe causado alguma espécie de traumatismo craniano ou qualquer coisa do tipo.
foi quando a menina disse com uma doçura na voz que muito provavelmente eternizaria aquele momento por noites de sono mal dormidas - eu sempre sonhei em conhecer algum garoto que se chamasse patrick - e sorriu. patrick poderia jurar que conseguia ouvir all you need is love tocando como se a música estivesse saindo de dentro da menina. e então, interrompendo aquele momento de ternura, uma nuvem negra pairou sobre o corpo daqueles dois jovens estudantes jogados um sobre o outro no pátio de um colégio da américa latina. patrick estava com medo.
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pense bem antes de usar!

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domingo (20/09) estreou a minha coluna no blog bicho de se7e cabeças. a idéia do blog surgiu do mineiro marcos vinícius, responsável pelo selo terceira margem, da editora multifoco, e levará sete autores a publicar sobre um determinado assunto cada dia da semana. eu estarei presente aos domingos na coluna 'chá de minhocas'. a idéia é que ao final de um ano o melhor do blog se transforme num livro.

a comunidade do orkut prazeres amélie poulain organizou um blog e já alcançou a marca de mil visitas em dezoito dias, com cinquenta seguidores e mais de cem comentários nos quarenta e cinco posts publicados até o momento. eu faço parte dessa história e gostaria de parabenizar a todos que colaboraram para esse resultado.
adicione a comunidade no seu perfil, acompanhe o blog e siga o nosso twitter. e se ainda não viu 'o fabuloso destino de amélie poulian', não perca mais tempo e vá correndo à locadora mais perto de sua casa. aproveite cada momento de prazer, por menor que seja, e se torne um amelístico você também! (:
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o começo do fim

| 17 de set. de 2009
naquele tempo eu tinha dezessete anos. era um rapaz magrelo, cheio de espinhas na cara e alguns fiapos de cabelo nas pernas. ainda não sabia muito bem o que fazer com a vida e acreditava em todas aquelas histórias de amor que os poetas contavam nos livros. eu era um adolescente de classe média baixa que dormia nas aulas de matemática e virava as noites sonhando acordado em ser famoso. passava a maior parte do tempo sozinho e tinha vergonha das meninas.
eu tinha alguns livros espalhados pelo quarto e o meu guarda roupa se resumia a dois pares de calçados, um chinelo, dois casacos, algumas camisas desbotadas, quatro bermudas e uma calça jeans. no final de quase todas as manhãs eu costumava apagar as luzes enquanto ouvia dave matthews num aparelho de som que havia sobrevivido a duas enchentes. a música me levava pra um lugar distante, e embora eu não conseguisse entender muita coisa do que ela queria me dizer, eu tinha certeza que aquele cara estava do meu lado e que ele podia imaginar a porcaria que era ser adolescente num país de merda como o meu. ao meio dia aquele ritual era interrompido por duas batidas na porta do quarto que anunciavam que o almoço estava na mesa. o meu pai costumava fazer o sinal da cruz enquanto prestava atenção no noticiário local que passava na tevê, antes de engolir aquele arroz sem sal preparado pela minha mãe,e morder aquele bife com gosto de borracha.
aqueles dias se resumiam num profundo sentimento de espera. era sempre o tempo que estava a frente de todas as coisas, como se eu vivesse numa eterna introdução. eu queria me mudar de cidade pra ter uma vida independente, e começar a trabalhar pra poder comprar todas aquelas coisas que eu sempre quis ter. eu queria entrar num curso de jornalismo pra poder aprender a escrever tão bem quanto aqueles caras que eram os meus heróis e quem sabe, com sorte, poder publicar o meu primeiro romance ou realizar um sonho qualquer. mas o relógio insistia em me olhar com aquela pose de senhor das coisas e a dizer que eu deveria me adaptar à ordem dele ou estaria à margem da felicidade.
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o doce e encantado mundo da internet

| 11 de set. de 2009
foi uma luta imperial contra o tempo nessas últimas horas. eu dizia, rodrigo, calma, você precisa manter a calma. ficar ansioso assim não vai te levar a lugar nenhum. mas o relógio parecia não correr na mesma direção que a minha. eu apertava aquele botão estúpido que atualiza as páginas da internet, e não havia nenhum sinal. o meu navegador insistia em colocar a culpa no servidor. e eu penso que essas grandes companhias deveriam inventar uma espécie de manual de sobrevivência para pessoas como eu, que sofrem inescrupulosamente com paralisias virtuais.

ando saindo de casa muito pouco nesses últimos tempos. apreendi uma espécie de fobia social, como se todas as pessoas do mundo tivessem sempre um bom motivo para descobrir e desenvolver suas tiranias perto de mim. inofensivas caminhadas em parques, barzinho com os amigos e até mesmo sorvetes em praças de alimentação só me aproximam ainda mais de uma solidão carente e pegajosa. vivo num eterno outono enquanto todas as outras pessoas do mundo parecem desfilar sorridentes com suas namoradas, e seus carros tunados, e suas contas bancárias, e seus empregos engravatados, em suas longas primaveras. como sempre fui um apaixonado por comunicação, e um dilacerador de palavras por ofício, acabei descobrindo na internet uma fórmula para me manter conectado à velha humanidade, de uma maneira segura (?).
espero sobreviver.
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nocaute

| 10 de set. de 2009
quando você é nocauteado, a sensação não é ruim. na verdade é uma sensação boa. você não sente dor, só uma forte embriaguez. você não vê anjos nem estrelas e se sente numa névoa agradável. depois que Liston me acertou em Nevada, senti, por uns quatro ou cinco segundos, que na verdade todos no estádio estavam junto comigo no ringue, rodeavam-me como uma família. quando você é nocauteado, sente carinho por todos. você se sente amável para com todos. e tem vontade de se levantar e beijar todo mundo - homens e mulheres - e depois da luta com Liston alguém me disse que, do ringue, eu mandei um beijo para a multidão. eu não me lembro disso. mas acho que é verdade porque é assim que a gente se sente durante quatro ou cinco segundos depois de um nocaute.
mas aí esse sentimento agradável acaba. você se dá conta de onde está, do que está fazendo ali e do que acaba de acontecer com você. e o que se segue é uma dor, uma sensação nebulosa - não uma dor física - uma dor combinada com raiva; é uma dor do tipo o-que-é-que-as-pessoas-vão-pensar; uma dor de quem sente vergonha pela própria incompetência... e a única coisa que a gente quer é um alçapão no meio do ringue - um alçapão por onde pudesse cair e ir parar diretamente no vestiário, para não ter de sair do ringue e encarar aquelas pessoas. o pior de perder é ter que sair andando do ringue e encarar aquelas pessoas.

- Floyd Peterson
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uma prece para arturo bandini

| 9 de set. de 2009
pus-me de joelhos, fechei os olhos e tentei pensar em palavras-de-oração. palavras-de-oração eram um tipo diferente de palavra. nunca percebi até aquele momento. então fiquei sabendo da diferença.
mas não havia palavras. eu precisava rezar, dizer algumas coisas; havia uma prece em mim como um ovo. mas não havia palavras.
certamente não aquelas velhas preces!
não o pai-nosso, com o pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome, abençoado seja o vosso reino... eu não acreditava mais naquilo. não havia tal coisa como o céu.
nem o ato de contrição, sobre oh meu deus, estou pesaroso de todo o meu coração por tê-lo ofendido e detesto todos os meus pecados...
havia nietzsche, friedrich nietzsche.
tentei recorrer a ele.
rezei: - oh, caríssimo e adorado friedrich!
nada feito. parecia que eu era um homosseuxal.
tentei de novo.
- oh, caro sr. nietzsche.
pior. porque comecei a pensar nas fotos de nietzsche nos frontispícios de seus livros. elas o faziam parecer um aventureiro da corrida do ouro de 1849, com um bigode desalinhado, e eu detestava os aventureiros de 1849.
além do mais, nietzsche estava morto. estava morto havia muitos anos. era um escritor imortal e suas palavras ardiam através das páginas de seus livros, e fora uma grande influência moderna, mas apesar de tudo aquilo, estava morto e eu sabia disso.
tentei então spengler.
eu disse: - meu querido spengler.
horrível.
eu disse: - olá, como vai, spengler?
horrível.
eu disse: - escuta aqui, spengler!
pior ainda.
eu disse: - bem, oswald, como eu ia dizendo...
brrr. e ainda pior.
depois de ter pensado em tantas pessoas sem nenhum êxito, fiquei cansado de tudo aquilo e ia desistir quando subitamente tive uma boa idéia, e a idéia era que eu não rezasse para deus ou para os outros, mas para mim mesmo.
arturo, meu rapaz. meu querido arturo. parece que você sofre tanto e tão injustamente. mas você é corajoso, arturo. você me lembra de um valoroso guerreiro com as cicatrizes de um milhão de conquistas. que coragem a sua! quanta nobreza! quanta beleza! ah, arturo, como você é realmente bonito! eu o amo tanto, meu arturo, meu grande e poderoso deus. pode chorar agora, arturo. deixe suas lágrimas escorrerem, pois a sua é uma vida de luta, uma batalha amarga até o fim, e ninguém sabe disso a não ser você, ninguém exceto você, um belo guerreiro que combate sozinho, inflexível, um grande herói como o mundo jamais conheceu outro igual.

- o caminho de los angeles, de john fante.
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tempestade

| 8 de set. de 2009
ontem pela madrugada um milhão de raios desabaram sobre o estado de santa catarina. um deles, uma ingrata força da natureza formada por essas moléculas que a gente tanto escuta falar nas aulas de química, atingiu em cheio um poste bem em frente ao prédio aonde moro, cortando a distribuição de energia no bairro inteiro. e assim, como se estivessemos novamente em séculos passados, vivendo longe das tecnologias e das luminárias incandescentes, eu peguei no sono. dez horas depois, ao acordar, apertei a tomada do meu quarto e, ao ouvir o clap daquele botão amarelo, vi que a lâmpada insistia em não respeitar o meu sinal. me senti impotente. sem luz. sem telefone. sem internet. sem fogão. sem chuveiro. sem eira nem beira. e assim permaneceu por mais um longo tempo, até que duas almas caridosas, dessas vestidas de macacão azul, crachá pendendo do lado esquerdo do peito, capacete amarelo pesando sobre a cabeça, pudessem encostar o caminhão da companhia de eletricidade ao lado do pobre poste machucado. como dois cirurgiões eles devolveram a normalidade às nossas vidas, iluminando as nossas casas com o frescor da modernidade.
o primeiro barulho que ouvi foi do microondas. como num estalo o meu cérebro associou que aquele barulhinho indicava que pedacinhos de eletricidade corriam pelos fios do apartamento até atingirem lentamente aquela máquina de aquecer comida. e através do som daquele pi, que soava como uma tecla de um piano de beethoven, ou como se estivesse saindo de uma flauta de bach, sussurrando aos nossos ouvidos indicando que a energia havia voltado, pude finalmente sair daquela apreensão toda, aprisionada dentro de horas entediantes que não passavam. foram segundos de extrema felicidade aqueles em que a velocidade da luz parecia acender o microondas em câmera lenta.
eu liguei o meu computador e os portais de notícia falavam a respeito de uma noite desagradável no estado de santa catarina. cidades decretando situação de emergência. mortes. ventos com mais de cento e vinte quilômetros por hora. casas destelhadas. árvores derrubadas. pessoas sendo levadas pelo vento. pessoas feridas. tornados. caos. eu era só mais um dentro de um estado prestes a explodir a qualquer instante. e apesar de tudo, aquilo que eu havia perdido, já havia ganho de volta. energia.
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a arte de falar pouco e não dizer quase nada

| 4 de set. de 2009


não deixem de acompanhar @rodrigodasilva.
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FILMES PARA VER ANTES DE MORRER

| 3 de set. de 2009
o fabuloso destino de amélie poulain (le fabuleux destin d'amélie poulain, 2001. dirigido por jean-pierre jeunet. com audrey tautou, mathieu kassovitz). IMDB 8.6/10. trailler.

durante muito tempo eu quis casar com a amélie poulain. às vezes ainda divido desse sonho. e até cometeria a loucura de dizer que a amélie poulain é um dos meus amores platônicos. não apenas porque ela é linda, encantadora, de fácil convivência, e poderia muito bem ter saído de um livro qualquer da clarice lispector. mas também porque o filme a respeito da vida dela se transformou em uma das grandes realizações do cinema mundial. se o fabuloso destino de amélie poulain fosse uma escola de samba e eu fosse um jurado de carnaval, seria muito difícil não dar nota dez para quesitos como roteiro, direção, fotografia, trilha sonora, e quase tudo aquilo que cerca esse que se tornou um dos grandes achados da cultura moderna.
o cinema francês sempre teve a fama de ser entediante, cansativo e chato demais pra quem pouco arriscou conhecer da sétima arte fora daquilo que é produzido em hollywood. mas quando jean-pierre jeunet, que já havia namorado com os blockbusters na filmagem de alien: a ressurreição, resolve nos contar a história de uma heroína defensora da sensibilidade, e que sente prazer com as coisas mais simples da vida, nós somos convidados a participar de uma viagem de total encantamento, através de um filme extremamente otimista e solidário.
tudo começa quando amélie poulain, uma jovem solitária interpretada por audrey tautou (um misto de bonequinha de luxo com traços de macabéa), encontra em seu apartamento um pequeno tesouro deixado há décadas por um antigo morador, que iria mudar pra sempre o rumo de sua vida - uma caixinha repleta de brinquedos. amélie se sente predestinada a encontrar o dono e devolver parte de sua infância, e aproveitaria a ocasião para abraçar a nobre missão de poder ajudar todas as pessoas que estivessem perto dela.
amélie é uma sonhadora. e sente prazer nas simples coisas da vida, como quando enfia a mão num saco de grãos, ou quebra a casquinha de açúcar de crème brûlée. amélie gosta de observar a expressão das outras pessoas numa sessão de cinema (mal poderia ela imaginar o quanto seu próprio filme seria um prato cheio para esse voyerismo puritano), e de jogar pedrinhas no lago de sua cidade natal só pra observar a trajetória que elas fazem na água. amélie gosta de imaginar a quantidade de pessoas que poderiam ter um orgasmo no exato momento em que estaria pensando a respeito disso. e de ajudar velhinhos a atravessar a rua enquanto narra com lirismo e delicadeza as coisas que estão acontecendo ao seu redor.
o fabuloso destino de amélie poulain nos remete a vários momentos ao qual mário quintana classificaria como aqueles que a gente 'pensa que está dizendo bobagens e está fazendo poesia'. é um filme que deve ser assistido com os cincos sentidos à flor da pele. como se fosse um manual de auto ajuda, sem os clichês, preparado pra fazer com que a gente se sinta melhor.