não é o poeta que fala por mim,
ou a poesia,
não fala por mim o gramático ou o crítico
não fala por mim o aparelho sobre a estante
que ecoa
por toda a casa
vazia
não fala por mim o tempo que vivo
a história que me toma pela mão
e me diz
não
não fala por mim a ilusão que houver
não é o solitário que fala por mim,
meu irmão,
e não fala por mim a mulher que acaba de abrir a janela
a espera dele que se embriaga no mais puro esquecimento
e o palhaço prestes a adentrar o picadeiro
ou
o pobre
homem
que atravessa a rua com o jornal
amassado
carregado em tintas
do passado
não fala por mim meu avô que morreu
meu amor que me esqueceu
a alegria que não me quis
não fala por mim o meu povo infeliz
que tão pouco tem para dizer com todas as letras
aquilo que quase não sabe
(mas vive, e como vive)
não é exatamente o inconsolável que fala por mim
nem o irremediável
nem o intratável
não fala por mim o pesadelo da noite
nem o sonho
o psicanalista não fala por mim
nem o psiquiatra com os seus remédios
ou o filósofo com os seus sistemas
e nem mesmo o louco com suas desrazões
não fala por mim tu que mal me conheces,
(porque isso te serviria de algum consolo?)
não fala por mim o pensamento de minha mãe
e de meu pai
que ainda vivos
podem pensar em mim
e no que faço eu
enquanto estou envelhecendo
não fala por mim o erro que cometi
o acerto que por lutas mereci
nem a mais recente ilusão adquirida
nos último deslumbres
da vida
o que fala por mim
é a minha ausência.
(Bêbado, como sempre e com muito orgulho, 03:30 de fria manhã).
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